terça-feira, 21 de julho de 2009

12- o corpo

- Por que, às vezes, queremos tanto ouvir? Que seja comprovado pelas palavras o que já é um fato? Só para doer, sofrer mais?
- O silêncio também dói.
- As palavras também podem doer.
- Acho que os homens falam demais, deveríamos falar menos e deixar as palavras para os livros, o papel branco e para a música.
- Concordo com você, pecamos mais quando falamos do que quando silenciamos. Pois o corpo dificilmente mente. Roland Barthes nos fala do corpo que não consegue enganar:
“O que eu escondo pela linguagem, meu corpo diz...Meu corpo é uma criança cabeçuda, minha linguagem é um adulto muito civilizado"...
Borges também diz que de certo modo alguém é o corpo: “Se meu corpo tem medo, eu tenho medo; se meu corpo chora, é porque estou triste; se meu corpo se apaixona, é porque estou enamorado”.
- O corpo ocupa espaço, tem gente que ocupa um espaço enorme, fala demais. Tem gente que não ocupa espaço nenhum, tem um corpo calado, não aparece. Há um limite que precisamos descobrir, conhecer.
- Você está no caminho.
- Estou aprendendo a lidar com o tempo e a morte, o corpo e as palavras. A morte não precisa do tempo; o corpo não precisa das palavras. A morte chega e leva o corpo deixando o tempo e as palavras para os homens que ficam. É a nossa maior herança, a memória.
- Você me fez lembrar que Kant diz que o Eterno é a ausência do tempo e o infinito é a ausência do espaço. Então, concluo que, quando morremos, deixamos o espaço e o tempo, deixamos a nossa memória, tornamo-nos então, infinitos e eternos.
- Em que acreditar na eternidade ou no nada?
- Diante desse universo o nada não existe.
- Então, acredito no além.

- Lembro-me daquela tarde de verão, inesquecível. Subia a ladeira de bicicleta e depois descia livre, com os pés e as mãos soltos no ar, o vento acariciava o meu corpo. Repeti isso cem vezes, cem vezes eu fui feliz em uma única tarde de verão. Guardo esta sensação como uma das “sete maravilhas da vida” que não devemos esquecer jamais. Tinha nove anos de idade.
- E por que em uma única tarde? Para mim é algo tão simples, andar de bicicleta. Porque não repetiu essa façanha cem vezes em cem dias, tinha apenas nove anos?
- Na manhã seguinte acordei com os olhos tão inchados que não conseguia abri-los. Foi constatada uma nefrite que me deixou meses de cama. Valeu-me por todos os livros que eu li, me encantei com um mundo que até então eu não havia explorado.
- Mas por que não conciliou as duas coisas depois que se curou? Um corpo livre e uma mente imaginativa?
- Não sei, não sei. Acho que o meu intelecto desafiou o meu corpo e venceu várias vezes. Durante anos tive a sensação que minha cabeça carregava o meu corpo. Meu corpo estava em segundo plano, o conhecimento, a cultura, era tudo. Cuidava do meu corpo somente na aparência, gosto da aparência das coisas e meu corpo era uma coisa que me pertencia.
- E você foi feliz esse tempo todo?
- Achava que sim, mas hoje eu sei que não. Tem que haver um equilíbrio. Meu corpo hoje me chama para dançar e minha cabeça agradece. Minha cabeça chama meu corpo para pensar e meu corpo agradece, descansa.
- E o que a fez mudar?
- Ainda não mudei, estou tentando. Meu corpo tentou me falar várias vezes, insistentemente, e quando meu intelecto estava distraído, eu dava ouvido a ele.
- O corpo fala o tempo inteiro, pelo olhar, o gesto, o cheiro, o calor, a dor, sem precisar emitir uma só palavra. A comunicação entre os seres com o corpo é maior e mais sentida que o intelecto. O odor e sua percepção integram um dos mais antigos métodos de comunicação. Foi o homem que inventou as palavras, assim como inventou o tempo. Ambos, a palavra e o tempo são úteis, mas ainda não sabemos lidar com eles.
- Começo a entender.
- Quando o seu corpo falou e você percebeu?
- Era a primeira vez que eu o via, apoiei minha mão com delicadeza na cadeira, sabia que minhas mãos estavam bonitas. Ele as notou, movi as mãos, alisei meu cabelo, toquei no tecido da manga do meu vestido como se tirasse um fio invisível de cabelo e apoiei-as novamente. Vi que ele acompanhou todos os movimentos das minhas mãos sem tirar os olhos delas. Quando estava indo embora ele correu ao meu encontro e se declarou. Minhas mãos o havia seduzido sem ao menos tocá-lo.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

11- destino

- É coisa do destino.
- Do que você está falando?
- Da vida, começo a pensar que já está traçada, não temos escapatórias.
- A religião fala do livre arbítrio, sendo assim, você pode alterar o rumo da sua vida.
- Não sei, depois de todos esses anos começo a pensar que até o importuno foi oportuno, que até o imprevisto foi previsto. Não dá para entender porque certas coisas acontecem,
ou melhor, não dá para entender por que certas coisas não acontecem.
- É mesmo, quando parece que tudo está caminhando no curso normal e o objetivo será alcançado, do nada muda.
- É o destino, não é possível, só pode ser o destino.
- Calma, pense bem, será que você não quer enxergar onde foi que errou e coloca a culpa no destino? Tudo que fazemos tem um efeito, a lei da causa e efeito.
- Durante muito tempo achei que era isso, ah, àquela velha frase “Nada é por acaso”. Mas as coisas estão se tornando cada vez mais difíceis, desencontros, não sei... Parece que algo não deixa acontecer. Por que não aceitar o acaso? Por que não deixamos a natureza agir?
- O que de fato aconteceu?
- E por que haveria de acontecer algo? Estou assim é porque nada aconteceu.
- Não é o acaso este seu encontro com todos estes escritores? Olhe o que acabo de ler: “Negue-me tudo a sorte, menos vê-la, que eu, estóico sem dureza, na sentença gravada do destino. Quero gozar as letras”, disse Fernando Pessoa.
É hoje o seu prazer, onde você não se sente só, escrevendo.
- É a maneira que eu encontrei de encontrar-me, de entender-me e quem sabe assim, encontrar o outro.
- Ou talvez não o encontre, mas encontre “os outros”.
- Pode ser, mas como seria bom encontrar-me no outro.
- Amós Oz fala que é difícil viver sem viver o ‘outro’, muitas vezes, é difícil viver com o ‘outro’, mas é terrível viver sem ele.


Volto àquela idéia do homem pela metade à procura da outra metade...

- Sabato me revela que foram os tempos modernos que aniquilaram filosoficamente o corpo. Até os platônicos o excluíram. E isso, entre outras coisas acentuou nossa solidão. Ainda bem que estou resgatando-o.
- Conseguiram então dividir o homem em dois, corpo e espírito. Por isso essa procura incessante pela outra metade; que é senão, a procura por essa unidade, “corpo e alma”. “Enquanto corpo, somos perecíveis e relativos; e enquanto espírito, participamos do absoluto e da eternidade”. Diz Sabato.
- A arte pode ser um instrumento para resgatar esta unidade.
- Se a vida nos presenteia com uma série de caminhos e temos que escolher um único caminho que nem sabemos onde vamos chegar, será que esta escolha já é predita e somos direcionados a ela? Será que fazemos da nossa vida um romance no qual nós somos o protagonista e criamos nossa própria história? O destino é o nosso próprio romance que nós mesmos criamos?
- Então, que façamos da vida um eterno romance, de crises, de angústias, mas também de alegrias, de ilusões. Sentir com o corpo inteiro é manter a alma viva.
- Por que não deixemos a natureza agir? Você perguntou. Mas para isso, comecemos então por nos despirmos de preconceitos. E começar por uma análise de nossas próprias atitudes.
- É um difícil começo.
- Em “As cidades invisíveis” de Italo Calvino, existe uma cidade chamada Zora que por ser obrigada a ficar imutável e imóvel para facilitar a memorização, ao contrário, foi esquecida pelo mundo.
Este é o segredo, aceitarmos todas as mudanças em nossas vidas que sem elas, boas ou más, nós não cresceríamos.
- Acredita na felicidade?
- Claro que sim, sou feliz em vários momentos da vida.
- Você diz Sou ao invés de Fui. Por que conjuga no presente algo que nem sabemos que está por vir?
- Porque a vida é de momentos e se não fosse a infelicidade nunca saberia o que é a verdadeira felicidade. Reconheço na vida as coisas que me deixam feliz e vou à procura delas.
- Você me fez lembrar de um momento infeliz feliz.
- Como assim?
- Estava ouvindo um tango de Piazzolla, uma música triste. Não tinha ninguém na cabeça para pensar, estava em um momento da vida só. Ouvindo àquela música comecei a me imaginar dançando com um grande amor e me deu uma saudade enorme dele, um homem que nem sequer existia. Naquele instante me senti apaixonada. Louco isso, não?!
- Aquela música triste e romântica te levou para um sentimento que você já havia passado e foi bom. Você conseguiu sentir com o corpo inteiro, corpo e alma.
- Talvez seja este o segredo, sentir a vida mágica, com poesia.
- É, a vida é feita de momentos... Que podem ser momentos ao acaso ou não.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

10- obstinação

Tenho tido encontro com escritores que chegam a mim sem que eu faça o menor esforço. Isto me anima e não paro de ler e escrever. Eles estão comigo eu sei, me fazendo revelações. Pareço louca ao dizer isso? Delirante? Obcecada? O próprio ato de escrever é algo maluco, escrevemos para que? Se no momento em que escrevemos nós somos os únicos leitores, os únicos críticos. Crônicas domésticas a serem jogadas no lixo. Por que escrevemos?

Fui ontem conhecer a maior livraria do país, eram tantas prateleiras e livros que não sabia nem por onde começar. Quantos autores! Infinitas palavras! Pensei. Parei em frente a uma estante qualquer e passei os olhos nos títulos e autores. Muitos que eu não conhecia e nem fazia idéia. Estava alheia, apenas olhando, perdida em meio a tantos livros, temas, títulos, imortais e mortais. Deixei apenas meus olhos transcorrerem curiosos. Até que um autor me chamou, “Ernesto Sabato”. Sempre tive curiosidade para lê-lo, mas nunca fui atrás. Era um livro pequeno, de poucas páginas e não era muito caro. Confesso que nem me ative ao título, somente ao autor. Abri, dei uma lida rápida e me identifiquei no ato.

Descubro o quanto eu gosto de escritores latinos, pensando bem, escritores da língua espanhola; cubanos, chilenos, espanhóis, até mesmo mais, falo em quantidade, do que os meus conterrâneos. Por que? Acho que minha identificação é mais metafísica do que regional e política. Sinto minha alma estrangeira, exilada, colonizada, como a deles. Ela se identifica com mundos eqüidiferentes.
Cheguei em casa, abri o livro “O escritor e seus fantasmas” e me deparo com respostas para as perguntas que tenho feito ao longo destas páginas. Sei que não sou um escritor, nem descobri ainda se um dia serei. Escrevo apenas para descobrir em mim mesma e na minha vida algum sentido. Tenho hoje, apenas interesse pela existência e procuro na literatura obter respostas pra as minhas angústias. Penso que a angustia mata quando a alma se esgota. Minha alma está cheia de vida enquanto anseia por conhecer. E isto está fazendo sentido para mim. Como me disse Rilke: o exame de consciência que lhe peço, não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios”.
Para Ernesto Sabato: “A literatura não é um passatempo nem uma evasão, mas uma maneira – talvez a mais completa e profunda – de examinar a condição humana”. Para ele “parece difícil escrever algo profundo que não esteja ligado de maneira aberta ou emaranhada à infância”.

- A distancia da minha casa até a casa da minha avó tinha uns dois quilômetros. Minha cidade era cheia de relevos e nesse trajeto, subia ladeira, chegava-se na praça que era plana, descia ladeira, subia novamente e descia até chegar a casa com porão. Eu me lembro que, em uma das minhas idas até lá, caminhando sozinha, absorta com os meus pensamentos, tive uma sensação que nunca mais esqueci. Senti uma vontade enorme de não chegar nunca, era bom caminhar e pensar, queria continuar assim, pensando e caminhando infinitamente.
- E em que pensava e que era tão bom?
- Daria tudo para lembrar. Tinha mania de inventar histórias. Acho que toda criança tem uma fase na vida que inventa histórias. E acho que naquele momento devia estar fantasiando uma estória muito interessante.
- É verdade, me lembro que inventava estórias e eu era sempre o protagonista e estava sempre fugindo de casa. Acho que tem um momento na infância que ansiamos por liberdade. A inocente liberdade.
- Acho que estou vivendo isso novamente, sinto-me como estivesse caminhando e não paro de pensar e escrever, e a sensação no momento é que não quero que pare.
- E quando parar...
- Estarei Livre.

Para Borges o Livro é o mais espetacular instrumento utilizado pelo homem, é uma extensão da memória e da imaginação. Para ele um livro pode conter muitos erros, mas, ele conserva algo sagrado, o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria.
Portanto, agora, não temo os meus erros, foi difícil começar, sinto que não quero parar. Mas, me vem agora um novo desafio, quando parar. Quando se dá por terminado um livro? Um livro leva a outro que leva a outro e assim por diante? O livro sou eu, mesmo que o autor seja outro, mas quando leio e encontro essa felicidade, me encontro no livro. As palavras são infinitas, vários pontinhos formando este espaço que é o livro, infinitos livros formando este tempo que é a memória. Vou morrer, eu sei, mas antes vou deixar minha história em cada livro que eu ler, e se possível em cada livro que eu escrever. Desejo que a minha memória seja a sua, que seja a de quem lê. Que seja eterna.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

9- conselho

Sinto a cada dia uma vontade enorme de escrever, nunca persisti em algo por tanto tempo. Tenho meus momentos de inspiração para a pintura e estes momentos vêm e vão e eu os respeito. Mas escrever está sendo diferente, talvez por ser algo novo para mim e de descobertas.
Li outro dia algo muito interessante, de Humberto de Campos: “A lata de lixo é, na verdade, o resumo diurno de cada família. É ela quem diz, nas espinhas de peixe e nas cascas de ovos, os pratos que houve à mesa. É ela quem informa se, lá dentro na sala de jantar, se toma vinho ou cerveja, água mineral ou água da torneira. É ela que denuncia, com pedaços de jornal, as tendências políticas e sociais do dono da casa e, com as caixas vazias, os remédios que tomam e, conseqüentemente, a saúde dos moradores do prédio. Cada lata de lixo, é, em suma, a crônica doméstica de uma família, deixada à noite à porta da rua”.

Meu pai diz que escrever é uma ‘catarse’, mas nos liberta. Estou vivendo esta purgação, limpando a casa, jogando no lixo o que não presta, até mesmo o que presta e não preciso mais. Estou me libertando. Hoje a noite, mais uma “crônica doméstica” será jogada no lixo, amanhã, quem sabe, alguém catará e talvez sirva, dê para aproveitar ou seja incinerada, vire cinzas e o vento se encarregará de espalhar crônicas invisíveis pelo mundo.

O engraçado é que continuo tendo encontros com o acaso. Os escritores estão me perseguindo. Caiu na minha mão um livrinho curioso, olhei a capa, o título e o autor que já tinha ouvido falar e nunca havia lido, olhei e comprei: “Cartas a um jovem poeta” de Rilke.
E ele, Rilke, me revela: “Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever, examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos da sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto, acima de tudo, pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: sou mesmo forçado a escrever?”.
- Eu respondi, antes mesmo de continuar a leitura: Sou.
E em seguida leio:
- “Então construa sua vida de acordo com essa necessidade... Não escreva poesias de amor...relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza- relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade”.
- Mas é isso que estou fazendo, mas tenho tão pouco para contar, minha vida é tão simples, parece-me tão pobre. A cada frase lida, pensava e respondia a mim mesma, mas Rilke parecia ouvir-me e responder-me:
- “Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente”.
Entrei nesse universo e disse a mim mesma: - tenho lembrado e escrito coisas esquecidas da infância...Rilke estava me ouvindo, agora tive a certeza porque ele prosseguiu:
- “Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas desse longínquo passado”.
-Uma ultima pergunta Sr Rilke, eu sempre faço esta pergunta: Devo continuar?
- “Não lhe posso dar outro conselho fora este: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra a sua vida; na fonte desta é que encontrará a resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la. Talvez venha a significar que é chamado a ser um artista. Nesse caso, aceite o destino e carregue com seu peso e sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou. E se renunciar a isto, mesmo assim, o exame de consciência que lhe peço, não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios”.
- Obrigada, Sr Rilke. Boa noite!

sábado, 20 de junho de 2009

8- relacionamento

Há dias não escrevo, sem tempo e agora neste exato momento, com tempo e sem inspiração. Iniciei falando de amor parei e não consigo continuar. Talvez seja a minha maior dificuldade, amar e desejo.
Digo sempre que a coisa mais difícil na vida, fora doença, é o relacionamento, seja intimo, no trabalho, ou amizade. Lidar com as pessoas é algo difícil, que se aprende ao longo da vida. Haja sabedoria e nem todos são sábios.
Quando resolvi selecionar minhas amizades, minha vida ficou mais tranqüila, mais leve. Tenho no meu círculo de amizade os meus melhores amigos, àqueles a quem posso dizer não, sim, vamos, não vou, vai, gosto, não gosto, quero, não quero, tudo bem, tudo mau, atrasei, desculpe, perdão, rir, chorar, dar o ombro, dar de ombro, sumir, chegar, telefonar, não telefonar, sair, não sair, sem cobranças. Aqueles que me entendem e eu os entendo, aqueles que sei os defeitos e que sabem os meus defeitos, mas nossas qualidades superam tudo. Aqueles que são tão diferentes e tão iguais ao mesmo tempo. Encontrar estes verdadeiros amigos às vezes é uma jornada de vida. Digo que os melhores amigos é uma segunda família que formamos, mas aqui fazemos a escolha. Ter essa sorte na vida é tudo.
A escritora portuguesa Maria Inês Pedrosa nos presenteia com uma frase perfeita: “Só aos amigos é dado o espetáculo da nossa miséria”.
Relacionamento a dois, no âmbito ‘romântico amoroso’... tem toda uma história...outra história. E o pior, é um encontro sem seleção, além da razão...
- Não seria, então, outra forma de amor?

- Lembro-me da casa da avó, era uma casa com porão, hoje não existem casas com porão. Elevavam as casas do solo.
- É mesmo, a engenharia resolveu todos os problemas e a arquitetura perdeu seu mistério.
- Guardo na memória este mistério, o desejo e o medo de explorar esta caverna arquitetônica.
O buraco, o chão batido, o teto roçando a minha cabeça, o medo, as descobertas, pisar em objetos velhos, perdidos, baratas e ratos mortos, quanto medo, riscos e depois a sensação heróica da coragem.
- Os mistérios nos mantêm na inocência... Quando você perdeu sua inocência? Você se lembra?
- Não sei nitidamente, mas me lembro de um fato marcante. Lembro-me do Carnaval. Quando criança adorava as matinês. Passava um mês inteiro inventando minha fantasia, de havaiana, de egípcia, de pirata. Era pura magia chegar fantasiada no clube para no ultimo dia sair pulando pelas ruas da cidade, despedindo da fantasia e já ansiando pelo próximo ano. Aos 12 anos meu pai permitiu que eu fosse pular à noite acompanhada dos meus primos maiores e sob a vigia dos meus tios. Acho que eu era ainda muito inocente e, não entendi muito os abraços e beijos e a bebida e a folia desabafada das angustias e desejos. Algo me decepcionou, não sei bem o que, e os outros carnavais foram bem diferentes daqueles até os meus doze anos. Perdi um pouco da inocência.
- Perdemos a inocência quando deixamos de acreditar em Papai-Noel.
- Um amigo, ateu e cético me disse em segredo que quando era criança ele jura que viu Papai-Noel. Eu olhei incrédula e não disse nada, na verdade, não tive coragem de dizer a ele que eu também o havia visto.
- Perdemos a inocência quando descobrimos porque papai e mamãe trancam o quarto algumas vezes. Era angustiante bater naquela porta e eles não abrirem, sabia que algo estava errado, pois, na maioria das vezes era permitido entrar.
- Perdemos a inocência quando percebemos a eficácia dos jogos do amor e da sedução. Eles existem desde o momento em que nascemos, mas, quando perdemos a inocência, mudam-se os valores.
- Perdemos a inocência quando descobrimos o amor-desejo. Mas ele é tão misterioso que no mais puro amor, na união dos corpos, entre o desejo pleno e o amor, tornamo-nos de novo inocentes.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

7- amor

- Disse para o meu terapeuta o que pensava sobre o amor e ele discordou, me passou vários livros sobre o tema. Ando lendo e pensando sobre o amor e até agora não mudei de idéia. Sou teimosa, mas escuto, pode ser que até o final deste livro eu chegue à conclusão de que eu estava errada, se é que vou chegar a um final, não sei de nada e acho que sei algumas coisas, estou aprendendo. Estou até aprendendo a escrever um livro!
- E qual é a sua idéia sobre o amor?
- Dizem que existem várias formas de amor. Para mim existe uma única forma de amor e diferentes formas de desejo. Posso amar meu pai, meu irmão, meu amante, meu marido da mesma maneira, mas, com desejos diferentes. Amar é amar, não existe fórmula, não existe forma. Desejar é diferente, do meu pai desejo carinho, proteção; do meu irmão desejo amizade, do amante desejo beijos, abraços, sexo, mas, posso sentir o mesmo sentimento de amor por cada um deles. Se amor é afeto, é companhia, é proteção, é respeito, é saudade, é amizade, se amo, amo todos de igual maneira, mas desejando cada um de formas diferentes de desejo. Esta é a minha maneira de pensar.
- Ágape e Eros, o amor espiritual e o impulso biológico. A união dos dois gerando o amor romântico. O amor romântico, não é outra forma de amor?
- Eu chamo de amor-desejo. O amor, é o mesmo, os impulsos é que são diferentes. No livro “O Poder do Mito”, Campbell diz que “o amor, o verdadeiro amor, suporta tudo” e “que a dor do amor não é outra espécie de dor, é a dor da vida”. Portanto, acho eu, que esse amor que suporta tudo é o mesmo amor entre mãe e filho, é o mesmo amor entre dois amantes, os desejos é que são diferentes.
- Mas existe o amor descontrolado, arrebatado, amor neurótico, o amor egoísta, e o amor como atenção que nos fala Carlos Fuentes.
- Os desejos é que são egoístas, os desejos podem ser neuróticos. Amor é amor.
- O que você me diz, por exemplo, do amor que pode gerar o ódio? Sobre o amor ao ódio? Sobre o amor sádico?
- Isto não é amor. É o mal disfarçado de amor. É puro egoísmo. É o desejo inconseqüente pensando somente em si mesmo.
- E o prazer? Os prazeres do amor, as ilusões do amor? Você acha que é o mesmo amor que todos sentem?
- É o “desejo pleno” da felicidade a dois. Se sexo é desejo, sexo não é amor, pode ser conseqüência de um amor, ou somente de um instinto ou de uma carência. Sexo não é amor. Mas sexo, conseqüência de uma carência ou instinto dura o tempo do ato, depois morre, morre o desejo; sexo, conseqüência de um amor é mais que o ato, é puro amor. É o desejo pleno do amor.

- Ela tinha medo, medo de amar, medo das conseqüências de amar.
- Das responsabilidades?
- Não, ela era muito nova para entender de responsabilidades. O medo era da entrega física, da dor, da entrega do corpo, o enlace físico.
- Medo de sexo?
- Sim, os adultos lhe diziam que era pecado, era proibido, mas ninguém lhe explicava o porque, a verdade. Passou anos e anos com o desejo e o medo. Mas ela sabia amar.

por rosilene

domingo, 7 de junho de 2009

6- memória

As palavras vão surgindo, converso com a memória e ela me instiga e me faz escrever. Tudo vai evoluindo, nem eu mesma sei onde vou chegar. Ontem, comecei falando da minha infância e de repente estava falando sobre a velhice e a maturidade.

No dia seguinte, na minha leitura diária no café da manhã, mais uma coincidência ou acaso aconteceu. No Caderno de cultura do jornal da cafeteria, trazia uma entrevista com um autor Irlandês que eu não conhecia John Banville. E mais uma vez o título da matéria me chamou a atenção: ‘A aventura de crescer e envelhecer’.
E mais interessante ainda, John Banville fala que gosta de lembrar Baudelaire: “O gênio literário consiste na habilidade de concentrar a infância no futuro”. Para Banville, “a imaginação trabalha com a memória como um fogo na folha de papel: sempre ardendo”.
Banville não acredita em inspiração divina, para ele: “escritores são pessoas normais - talvez ligeiramente mais obcecadas”.

Talvez seja isso, eu uma pessoa ligeiramente normal, ando ultimamente obcecada por escrever um livro.
Também não acredito que o grande Deus perca tempo em me inspirar a escrever, mesmo porque, se Ele fizesse isso, eu entraria em transe e escreveria uma grande obra. Seria aclamada por todos os cantos do planeta, ganharia prêmios e honrarias. Mas talvez um anjo, um anjo rebelde esteja me inspirando a falar sobre a morte, a dor, o tempo e o amor. Ele me inspira à noite e ainda me comprova, levando-me ao encontro destas criaturas pensantes, poetas, vivos ou mortos, mas imortais nas palavras.

Encontro-me com Amós Oz e ele diz que há coisas invisíveis que são necessárias para guiar nossos sonhos e esperanças. E também nosso medo.
Penso que estas coisas invisíveis estão dentro de nós e escrever é torná-las visíveis, vivas.
Mas Borges me lembra que sou o mais comum dos mortais e rebate que a poesia, tal ou qual verso feliz não pode envaidecer-nos, porque é dom do acaso ou do espírito; só os erros são nossos.
Não sei se o que eu escrevo são versos ou somente erros, mas, está sendo angustiantemente prazeroso. E para escrever preciso crer em algo além dessa realidade presumível.
No meu ultimo encontro com Fernando Pessoa, um pouco antes de escrever este capítulo ele foi muito sábio ao me dizer que “Quem tem Deuses nunca tem tédio. O tédio é a falta de uma mitologia. A quem não tem crenças, até a dúvida é impossível, até o ceticismo não tem força para desconfiar. O tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à verdade”.

- Lembro-me exatamente como ela se vestia, tinha uma blusa de lurex, saia palito, um sapato scarpin e meia de seda. Ela pode ter trocado de roupa milhares de vezes, mas é este conjunto que ficou na minha memória. Era da classe média, eram anos 60, se vestia como Jack e não como Chanel.
- Você já me falou desta blusa de lurex várias vezes.
- O brilho me fascinava, brilho nos olhos de criança é como caleidoscópio.
- O que mais você lembra?
- Lembro-me de uma mesa de centro com pés romanos e pátina dourada. O tampo era de um mármore branco grego. Ela era a própria descrição da mesa, a beleza grega e o porte romano.
- O que mais?
- Ela tinha uma casa de fachada azul com um belo jardim, um marido e três filhos.
- Ela era feliz?
- Não me lembro de algum dia na minha vida tê-la visto triste. Estava sempre feliz. Adorava comprar cristais e cada vez que as crianças quebravam, ela não reclamava e no dia seguinte chegava com mais cristais.
- Ela mudou? Continua assim?
- Um dia, a vida lhe tirou a casa, depois os sapatos e os vestidos. Os cristais quebraram. Restou-lhe o marido, os filhos e o jardim.
- E ela? Perdeu a ilusão?
- Perdeu todas as ilusões, mas restou-lhe a doçura.
- Você se parece com ela?
- Não sei, não tive filhos e nem um marido romântico. E também nunca tive um jardim para cuidar. Na falta de cristais me contento com vidros. Mas herdei-lhe todas as ilusões.

por rosilene