terça-feira, 21 de julho de 2009

12- o corpo

- Por que, às vezes, queremos tanto ouvir? Que seja comprovado pelas palavras o que já é um fato? Só para doer, sofrer mais?
- O silêncio também dói.
- As palavras também podem doer.
- Acho que os homens falam demais, deveríamos falar menos e deixar as palavras para os livros, o papel branco e para a música.
- Concordo com você, pecamos mais quando falamos do que quando silenciamos. Pois o corpo dificilmente mente. Roland Barthes nos fala do corpo que não consegue enganar:
“O que eu escondo pela linguagem, meu corpo diz...Meu corpo é uma criança cabeçuda, minha linguagem é um adulto muito civilizado"...
Borges também diz que de certo modo alguém é o corpo: “Se meu corpo tem medo, eu tenho medo; se meu corpo chora, é porque estou triste; se meu corpo se apaixona, é porque estou enamorado”.
- O corpo ocupa espaço, tem gente que ocupa um espaço enorme, fala demais. Tem gente que não ocupa espaço nenhum, tem um corpo calado, não aparece. Há um limite que precisamos descobrir, conhecer.
- Você está no caminho.
- Estou aprendendo a lidar com o tempo e a morte, o corpo e as palavras. A morte não precisa do tempo; o corpo não precisa das palavras. A morte chega e leva o corpo deixando o tempo e as palavras para os homens que ficam. É a nossa maior herança, a memória.
- Você me fez lembrar que Kant diz que o Eterno é a ausência do tempo e o infinito é a ausência do espaço. Então, concluo que, quando morremos, deixamos o espaço e o tempo, deixamos a nossa memória, tornamo-nos então, infinitos e eternos.
- Em que acreditar na eternidade ou no nada?
- Diante desse universo o nada não existe.
- Então, acredito no além.

- Lembro-me daquela tarde de verão, inesquecível. Subia a ladeira de bicicleta e depois descia livre, com os pés e as mãos soltos no ar, o vento acariciava o meu corpo. Repeti isso cem vezes, cem vezes eu fui feliz em uma única tarde de verão. Guardo esta sensação como uma das “sete maravilhas da vida” que não devemos esquecer jamais. Tinha nove anos de idade.
- E por que em uma única tarde? Para mim é algo tão simples, andar de bicicleta. Porque não repetiu essa façanha cem vezes em cem dias, tinha apenas nove anos?
- Na manhã seguinte acordei com os olhos tão inchados que não conseguia abri-los. Foi constatada uma nefrite que me deixou meses de cama. Valeu-me por todos os livros que eu li, me encantei com um mundo que até então eu não havia explorado.
- Mas por que não conciliou as duas coisas depois que se curou? Um corpo livre e uma mente imaginativa?
- Não sei, não sei. Acho que o meu intelecto desafiou o meu corpo e venceu várias vezes. Durante anos tive a sensação que minha cabeça carregava o meu corpo. Meu corpo estava em segundo plano, o conhecimento, a cultura, era tudo. Cuidava do meu corpo somente na aparência, gosto da aparência das coisas e meu corpo era uma coisa que me pertencia.
- E você foi feliz esse tempo todo?
- Achava que sim, mas hoje eu sei que não. Tem que haver um equilíbrio. Meu corpo hoje me chama para dançar e minha cabeça agradece. Minha cabeça chama meu corpo para pensar e meu corpo agradece, descansa.
- E o que a fez mudar?
- Ainda não mudei, estou tentando. Meu corpo tentou me falar várias vezes, insistentemente, e quando meu intelecto estava distraído, eu dava ouvido a ele.
- O corpo fala o tempo inteiro, pelo olhar, o gesto, o cheiro, o calor, a dor, sem precisar emitir uma só palavra. A comunicação entre os seres com o corpo é maior e mais sentida que o intelecto. O odor e sua percepção integram um dos mais antigos métodos de comunicação. Foi o homem que inventou as palavras, assim como inventou o tempo. Ambos, a palavra e o tempo são úteis, mas ainda não sabemos lidar com eles.
- Começo a entender.
- Quando o seu corpo falou e você percebeu?
- Era a primeira vez que eu o via, apoiei minha mão com delicadeza na cadeira, sabia que minhas mãos estavam bonitas. Ele as notou, movi as mãos, alisei meu cabelo, toquei no tecido da manga do meu vestido como se tirasse um fio invisível de cabelo e apoiei-as novamente. Vi que ele acompanhou todos os movimentos das minhas mãos sem tirar os olhos delas. Quando estava indo embora ele correu ao meu encontro e se declarou. Minhas mãos o havia seduzido sem ao menos tocá-lo.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

11- destino

- É coisa do destino.
- Do que você está falando?
- Da vida, começo a pensar que já está traçada, não temos escapatórias.
- A religião fala do livre arbítrio, sendo assim, você pode alterar o rumo da sua vida.
- Não sei, depois de todos esses anos começo a pensar que até o importuno foi oportuno, que até o imprevisto foi previsto. Não dá para entender porque certas coisas acontecem,
ou melhor, não dá para entender por que certas coisas não acontecem.
- É mesmo, quando parece que tudo está caminhando no curso normal e o objetivo será alcançado, do nada muda.
- É o destino, não é possível, só pode ser o destino.
- Calma, pense bem, será que você não quer enxergar onde foi que errou e coloca a culpa no destino? Tudo que fazemos tem um efeito, a lei da causa e efeito.
- Durante muito tempo achei que era isso, ah, àquela velha frase “Nada é por acaso”. Mas as coisas estão se tornando cada vez mais difíceis, desencontros, não sei... Parece que algo não deixa acontecer. Por que não aceitar o acaso? Por que não deixamos a natureza agir?
- O que de fato aconteceu?
- E por que haveria de acontecer algo? Estou assim é porque nada aconteceu.
- Não é o acaso este seu encontro com todos estes escritores? Olhe o que acabo de ler: “Negue-me tudo a sorte, menos vê-la, que eu, estóico sem dureza, na sentença gravada do destino. Quero gozar as letras”, disse Fernando Pessoa.
É hoje o seu prazer, onde você não se sente só, escrevendo.
- É a maneira que eu encontrei de encontrar-me, de entender-me e quem sabe assim, encontrar o outro.
- Ou talvez não o encontre, mas encontre “os outros”.
- Pode ser, mas como seria bom encontrar-me no outro.
- Amós Oz fala que é difícil viver sem viver o ‘outro’, muitas vezes, é difícil viver com o ‘outro’, mas é terrível viver sem ele.


Volto àquela idéia do homem pela metade à procura da outra metade...

- Sabato me revela que foram os tempos modernos que aniquilaram filosoficamente o corpo. Até os platônicos o excluíram. E isso, entre outras coisas acentuou nossa solidão. Ainda bem que estou resgatando-o.
- Conseguiram então dividir o homem em dois, corpo e espírito. Por isso essa procura incessante pela outra metade; que é senão, a procura por essa unidade, “corpo e alma”. “Enquanto corpo, somos perecíveis e relativos; e enquanto espírito, participamos do absoluto e da eternidade”. Diz Sabato.
- A arte pode ser um instrumento para resgatar esta unidade.
- Se a vida nos presenteia com uma série de caminhos e temos que escolher um único caminho que nem sabemos onde vamos chegar, será que esta escolha já é predita e somos direcionados a ela? Será que fazemos da nossa vida um romance no qual nós somos o protagonista e criamos nossa própria história? O destino é o nosso próprio romance que nós mesmos criamos?
- Então, que façamos da vida um eterno romance, de crises, de angústias, mas também de alegrias, de ilusões. Sentir com o corpo inteiro é manter a alma viva.
- Por que não deixemos a natureza agir? Você perguntou. Mas para isso, comecemos então por nos despirmos de preconceitos. E começar por uma análise de nossas próprias atitudes.
- É um difícil começo.
- Em “As cidades invisíveis” de Italo Calvino, existe uma cidade chamada Zora que por ser obrigada a ficar imutável e imóvel para facilitar a memorização, ao contrário, foi esquecida pelo mundo.
Este é o segredo, aceitarmos todas as mudanças em nossas vidas que sem elas, boas ou más, nós não cresceríamos.
- Acredita na felicidade?
- Claro que sim, sou feliz em vários momentos da vida.
- Você diz Sou ao invés de Fui. Por que conjuga no presente algo que nem sabemos que está por vir?
- Porque a vida é de momentos e se não fosse a infelicidade nunca saberia o que é a verdadeira felicidade. Reconheço na vida as coisas que me deixam feliz e vou à procura delas.
- Você me fez lembrar de um momento infeliz feliz.
- Como assim?
- Estava ouvindo um tango de Piazzolla, uma música triste. Não tinha ninguém na cabeça para pensar, estava em um momento da vida só. Ouvindo àquela música comecei a me imaginar dançando com um grande amor e me deu uma saudade enorme dele, um homem que nem sequer existia. Naquele instante me senti apaixonada. Louco isso, não?!
- Aquela música triste e romântica te levou para um sentimento que você já havia passado e foi bom. Você conseguiu sentir com o corpo inteiro, corpo e alma.
- Talvez seja este o segredo, sentir a vida mágica, com poesia.
- É, a vida é feita de momentos... Que podem ser momentos ao acaso ou não.