domingo, 24 de maio de 2009

5- primeiro amor

Muitas das recordações que temos, tiramos das fotos que marcaram algum momento. Quando tiramos fotos, congelamos o tempo. Acho que é por isso que amo fotografia, congelo o tempo e a memória, recupero a memória, melhor dizendo.

- Ela está sorrindo, com uma carinha de sapeca.
- Lembrou da menina? Onde a conheceu?
- Ainda não sei, é mais uma foto que eu encontrei.
- É melhor continuar revendo as fotos, talvez alguma delas te faça lembrar.
- Mas tenho receio que minha memória seja somente fotográfica. Preciso lembrar de coisas ou fatos que não estejam registrados em nenhum lugar que não seja minha memória.
- Tente, vá o mais longe que você conseguir, volte no tempo.
- Lembro-me de três coisas, um saquinho de tecido de algodão branco com um nome bordado em ponto haste com linha vermelha, uma manta florida que eu suponho, era guardada neste saquinho; e um triangulo, talvez o 1° instrumento musical que eu tenha tocado (toque, tato).
- E quando foi isso? Até onde conseguiu chegar?
- Acho que foi no Jardim da Infância, devia ter uns quatro anos.
- Lembra de algum fato?
- Com esta idade? Tenho uma memória fragmentada de momentos desta época. Lembro-me de várias crianças deitadas sobre as mantas, devia ser a hora do descanso. Lembro-me também de uma bacia com tintas coloridas onde nós mergulhávamos os papéis brancos e quando os tirávamos, surgiam garatujas coloridas.
- E a menina?
- Não sei dela ainda, suponho que a tenha conhecido no Jardim da Infância. Mas lembro bem de um menino que se chamava Ivan.
- Quem era ele?
- Um amiguinho de quem eu gostava. Só me lembro que eu gostava dele, mais nada.
- Seu primeiro amor?

Nascemos pela metade e passamos a vida inteira procurando a outra metade.
Durante muito tempo achei que esta metade fosse uma outra pessoa, durante anos procurei este grande amor, esta metade que me faltava.
Sou uma metade parte feminina, caso-me com uma outra metade parte masculina, nasce uma metade masculina ou feminina, um filho que gera outro filho e continuamos gerando várias metades. Então, pensei, gays seriam então ¼ de porção feminina e ¼ de masculina, sendo assim, só seriam completos casando-se com gays. Que loucura tudo isso.
Chega de meias verdades, eu sou uma panela inteira, gasta, usada, areada, limpa, suja, emendada, brilhante, fosca, mas uma panela com tampa e tudo. Às vezes preciso cozinhar aberta, outras de tampa fechada, às vezes esqueço de tampar, vasa tudo, tampo novamente e às vezes me sinto uma panela furada. E às vezes me sinto a própria “panela de pressão”. Mas sou eu, inteira sim, mas sentindo a necessidade e não a dependência, de amar e ser amada.

“Quero morrer de todo; quero morrer com este companheiro, meu corpo”, termina a Oração de Borges.
O mesmo Borges, maduro e rejuvenescido nos abençoa:
“O que eu estou procurando agora é a paz, a alegria de pensar e da amizade, e, embora possa ser demasiada ambição, uma sensação de amar e de ser amado”.
Será que precisamos envelhecer para rejuvenescer? Morrer para renascer?

por rosilene fontes

quarta-feira, 13 de maio de 2009

4- medo

Há muito tempo, achei um cartão em uma papelaria, daqueles feito à mão. O que havia me chamado atenção era o desenho abstrato e colorido. A cor me fascina, gosto de cor, desenhos e fotos coloridas, mas uma frase abaixo dele me acompanhou desde então, por toda minha vida:

“Nem tudo está perdido, quando se tem o poder de proclamar que tudo está perdido e há de se começar de novo”. Estava escrito entre parênteses ser de Cortazar (desconheço essa veracidade).
Lembro-me dela, a cada momento em que parece estar tudo perdido. Nunca somos os mesmos nem mesmo depois de 6 a 8 horas de sono. Um segundo depois poderia ter salvado muitos suicidas. Esta é a importância do tempo.

Outra frase que me acompanhou durante toda minha vida, também não a tirei de nenhum livro, encontrei-a numa destas revistas que lemos numa ‘estação’ qualquer: "Par ma paciance, j’ai perdu ma vie”. Dizia que era um provérbio francês. Descobri, tempos depois, que o poeta Arthur Rimbaud tinha uma frase parecida. Se é uma frase do poeta ou um provérbio francês, pouco me importa, mas a frase mexeu comigo:
Nas duas frases, (de Cortazar e Rimbaud), está implícito o tempo. Na primeira o tempo me salva, e na segunda, me alerta para não contar muito com ele.

- Ela teve medo.
- Medo de quê?
- Dormiu bem a noite inteira, como todas as noites. Não precisava nem ler para dormir. Como ela lamentava de não conseguir ler pelo menos um capítulo, o sono chegava antes mesmo de pegar um livro.
- Eu sei bem o que é isso. Fico horas olhando para o teto, levanto, tomo água, volto a deitar, pego um livro, clareia o dia... Ela deveria agradecer a Deus por não ter insônia. Mas o que aconteceu?
- A dor a acordou, era muito cedo e de repente a dor a despertou daquele sono.
- Como assim?
- Uma dor tão forte que ela não tinha posição, não tinha forças para levantar, a pressão abaixou, suava frio. Ela sabia que era a cólica, bastava um remédio para que a dor parasse, mas, não tinha forças.
- Ela não pediu ajuda?
- Morava sozinha e o telefone estava na sala, ela não tinha condições de levantar.
- O que ela fez?
- Começou a orar, Ave Maria, Pai Nosso, de maneira contínua, sem parar, sem pausa, e isto ajudava inspirar e expirar o ar. Ela comparou à dor de um parto sem nunca ter vivido um. Cada segundo de dor era um tempo enorme. Sabia que não morreria de cólica, mas aquela dor era a própria morte.
- E aí?
- Com muito esforço levantou, foi até o banheiro, sentou no vaso sanitário, abaixou a cabeça e gemia, lamentava de dor. Sentiu algo quente e sólido sair, depois um pouco mais fluído e o sangue começou a jorrar. O suor agora quente, a fez jogar para longe o lençol que a cobria. Então, aliviada e cansada, foi para cama e voltou a dormir.

Pensando bem, não temo a Morte, temo a Dor. Ambas não marcam a hora de chegar, chegam de surpresa. Pior é a dor que não tem hora de partida.
A dor física, a dor do coração, a dor da perda.
Roland Barthes nos fala dessa dor da perda do amado, “A imagem do outro – à qual estava colado, da qual vivia – não existe mais; ora é uma catástrofe que parece me afastar para sempre, ora é uma felicidade excessiva que me faz recuperá-la; de qualquer modo, separado ou dissolvido, não sou recolhido em lugar nenhum; diante de mim, nem eu, nem você, nem um morto, nada mais a quem falar”.

A morte nos recolhe para algum lugar, não sabemos onde, a morte é misteriosa. A dor nos mutila, nos persegue. Pode durar a vida inteira como também pode nos transformar.
Queira a Deus que me transforme sempre...